Semana passada entrevistei algumas candidatas à vaga de estágio na equipe de Design que coordeno. Conversar com estudantes traz sempre uma carga de frescor e nostalgia. Duas meninas talentosas, cheias de vontade de crescer e que me fizeram pensar no século passado, quando eu mesmo ia bater na porta das empresas com meu portfólio debaixo do braço, movido pelo sonho e pela esperança.
Durante toda a minha faculdade de jornalismo eu investi no desejo de me tornar “fotógrafo da National Geographic”. Coloco assim entre aspas mesmo porque este era um tipo de mantra repetido à exaustão. Dois TCCs sobre fotojornalismo, dois prêmios de jornalismo ainda como estudante e o destino certo era São Paulo.
Me formei no dia 5 de janeiro. No dia 10 eu já estava pelas bandas da Ipiranga com a avenida São João. Pós-graduação em Fotografia na pauta do dia, trabalhando como repórter para pagar as contas, e muitas mudanças. Resumi muito a história para chegar no ponto em que estou com meu portfólio debaixo do braço, a caminho de uma entrevista num coletivo de fotografia super premiado, que produzia muita coisa pra… TCHARAN! National Geographic.
Naquele dia, saí um pouco mais cedo do trabalho e estava pronto para a grande virada. Finalmente iriam descobrir o meu talento, uma jóia a ser lapidada. Cheguei e fui recebido pela Carol, uma colega de pós-graduação que trabalhava lá e que tinha me aberto o canal. Ela estava editando um material produzido pelo coletivo para a Vale do Rio Doce. Eu babando enquanto aguardava minha chance.
A entrevista não foi longa. Um dos fundadores do coletivo folheou minha pasta com cuidado, sem falar nada. Olhava cada detalhe das fotos impressas, passava a mão delicadamente. De vez em quando cerrava os olhos, indecifrável. Eram 24 fotos, principalmente de manifestações culturais e reportagens especiais que eu tinha produzido enquanto estudante e freelancer. Uma delas com menção honrosa na Bienal de Artes Fotográficas - Cor em Andorra. Outra selecionada para um Salão de Fotografia na Pinacoteca de São Paulo. Poxa! Não tinha como dar errado, né?
- Posso ser sincero?
Foram essas as primeiras palavras do meu entrevistador, após fechar o meu materia e me olhar nos olhos. Claro que pode, por favor. Respondi.
Ouvi, a palo seco, que as fotos não eram ruins, veja bem… mas faltava identidade no material. Faltava estilo. A técnica era aceitável, mas nada apurado o suficiente para chamar atenção, nem elementos de linguagem utilizados sistematicamente. Ele me perguntou se eu conhecia as fotos da “Flávia” (uma amiga em comum). Falei que sim. Ele disse: “você olha para as fotos da Flávia e sabe que são dela. Mesmo tratamento de cor, mesmos efeitos de iluminação, mesmo enquadramento nada ortodóxo. Agora olhe para as suas fotos e diga o que vê? Eu vejo futuro, mas não aqui”.
Engoli. Foi duro, mas engoli. Acho que foi a primeira vez que recebi uma crítica negativa ao meu trabalho. Construtiva, acredito, e negativa, certamente.
Para muita gente, esse golpe seria duro demais. Mas, estranhamente, caminhei leve de volta para casa naquela tarde nublada de São Paulo. Refleti muito sobre o que estava acontecendo e sobre todas as minhas tentativas de me expressar. Num exame aprofundado, percebi que, ao longo do tempo, eu vinha mimetizando o cenário à minha volta, algumas vezes com bastante sucesso, me fazendo passar por fotógrafo e músico, por exemplo. “Eu vejo futuro, mas não aqui”. Talvez ele estivesse se referindo ao coletivo, que meu futuro era em outra empresa de fotografia, mas interpretei à minha maneira e acredito que foi uma epifania importante. Eu tinha futuro, só precisava descobrir qual era.
Dali em diante passei a buscar um pouco mais de indentidade nas coisas que eu fazia, passei a tentar entender como imprimir minha própria marca no mundo, e acredito que ainda estou nesta trilha sem fim. Não deixei de sonhar, só estou tentando ouvir melhor as vozes da minha cabeça.
Ah! Antes de passar para o próximo tópico, uma curiosidade. Alguns anos depois dessa entrevista tive a oportunidade de trabalhar na Editora Abril. Fiquei um ano por lá. Quem editava a National Geographic Brasil era a Editora Abril e, por mais que tivesse desistido do plano de me tornar fotógrafo, achei ali uma oportunidade… vai que, né? Dessa vez não levei pasta de portfólio. Carregava apenas o meu crachá de funcionário. Peguei o elevador para chegar ao andar da revista, atravessei uma porta de vidro e cheguei num grande corredor escuro. Uma protinha tinha a placa “National Geographic” e meu coração disparou. Bati de leve na porta e girei a maçaneta para espiar por dentro. Quatro computadores, tudo meio bagunçado e uma pessoa ao telefone não parou para me atender. Era o fim. Sem glamour, sem fotos maravilhosas plotadas na parede, sem fotógrafos planejando uma próxima exibição. Aquele era o futuro com o qual sonhei tanto? Ufa! Meu futuro não era ali, eu teria que achar outro canto de um jeito ou de outro :)
Existe um livro infantil sobre isso?
Uniforme, de Tino Freitas e Renato Moriconi – Editora Gato Leitor
Você pode até demorar um pouco para conhecer o Clóvis, protagonista do livro Uniforme, escrito por Tino Freitas e ilustrado pelo Renato Moriconi, editado pela Gato Leitor, mas não perde por esperar. “Clovis nasceu livre e pelado, como todo camaleão. E, como todo camaleão, aprendeu a se camuflar para sobreviver”. Pronto. Já deu para entender onde vamos chegar?
Particularmente me identifiquei muito com Clóvis em sua jornada de se esconder na multidão e o texto do Tino permite que a gente se sinta acolhido. Afinal, não é errado tentar se adaptar, não é mesmo? Às vezes seguimos para a direita, às vezes para a esquerda, muitas vezes escondemos nossas fraquezas e não existe uma pessoa neste mundo, seja grande ou pequena, que não tenha feito isso uma pá de vezes, né?
E as ilustrações do Moriconi são uma delícia. O preto e o branco predominam, mas parece que as cores brotam na nossa imaginação. Para dar a ideia de uniformidade, cada página tem um padrão bem harmônico e só prestando bem atenção a gente consegue identificar o Clóvis por ali, escondidinho, no fluxo.
E é aí que entra um ponto bem legal de Uniforme. Por mais que tente passar incógnito a cada situação, a personalidade de Clóvis emerge e parece lutar para aparecer. Ele veste o uniforme, sim, mas não deixa de ser ele mesmo por trás daquelas máscaras.
E depois de dançar conforme a música tantas vezes, Clóvis terá a oportunidade de ser livre por um momento e seguir seu coração. Tem ideia do que pode acontecer? É mágico =D
É isso, pessoal! Até a próxima!
Excelente texto. Me perdí na leitura. Você escreve como se estivéssemos conversando num bate papo entre amigos. Ia ler apenas o primeiro parágrafo pra ver sobre o que se tratava mas fui capturado (ainda bem). Parabéns pela forma e pelo conteúdo.
Que lindo ler um texto com tanto coração. As decepções e críticas podem ser recebidas de muitas maneiras, e acho que você levou com maturidade. Nada é definitivo e escutar 'o seu lugar não é aqui', pode, de fato, não ter uma consequência ruim. Precisamos de 'sacodes' e 'banhos de água fria' para mudanças relevantes de rumo.
No mais, é a parte mais difícil compreender identidade, linguagem e autoralidade na fotografia - a busca é para uma vida inteira, e é um pedaço importante do trajeto.