Sobre perdas e as coisas não ditas
Faz um ano e meio que minha mãe faleceu. Era 20 de março de 2020 e a pandemia foi entrando sem pedir licença, entrou sem bater na porta e se instalou sem nenhuma cerimônia. Quando ela foi internada, no dia 14, peguei um avião sem pensar duas vezes e fiquei esses últimos 6 dias ao lado dela, me despedindo da melhor forma possível.
Não tivemos muitas conversas, já que o estado de saúde dela era bastante grave e a maior parte do tempo ela estava um pouco desorientada, em sofrimento. Mas as conversas que tivemos foram importantes. Na verdade, vínhamos tendo conversas importantes desde quando recebemos o diagnóstico de câncer, dois anos antes. E assim não deixamos muita coisa por dizer.
A sua passagem foi serena, às 6 horas da manhã, comigo e minha cunhada ao lado dela, de mãos dadas, relembrando o tanto de coisa incrível que ela conseguiu realizar nos dois últimos anos de sua vida. E ela foi em paz.
Mas esse preâmbulo todo é para dizer que ainda hoje há gente que sente muito pelas perdas, ressente-se ainda mais por não ter conseguido dizer o que precisava ser dito, aparar as arestas que poderiam ser aparadas. E foi pensando nisso, num exercício de escrita criativa, que escrevi a história abaixo, de um e-mail não enviado.
Rascunho (1) [SEM TÍTULO]
Por Bito Teles
Queridas Nona, Gigi e Paula
Percebi agora que há muito tempo não escrevo para vocês. Nos acostumamos tanto a mandar mensagens de áudio, fazer ligações em vídeo e trocar GIFs engraçados, que perdemos o hábito de nos alongarmos um pouco mais nas mensagens, não acham?
Pelo menos neste ponto esta doença maldita trouxe algum benefício. Parece que tenho tempo de sobra por aqui para falar o que sinto com um pouco de calma.
Os dias aqui não têm sido fáceis. Agora mesmo, logo que comecei a escrever, vejo uma movimentação intensa à minha volta. Estou numa ala intermediária de doentes. Muita gente chega bem, com um quadro parecido com o meu, conversando animado, e dois dias depois não os vemos mais. São transferidos para UTI ou recebem alta, que parece que será meu caso em breve, segundo os médicos. É uma roleta-russa. Aprendi o real significado da palavra paciente. Minha vida se resume a fazer exames, fingir comprometimento com a fisioterapia e monitorar a saturação do oxigênio. Passo horas olhando para o monitor como se ali estivesse passando episódios reprisados de Friends. Lembram quando assistíamos todos os dias na hora do almoço? Somos uma família muito estranha.
Sinto saudade desse tempo mais simples, quando eu era o único “homem” da casa. Apesar de ser o abridor oficial de potes de azeitona, consertador de chuveiros e o único que alcançava os maleiros dos armários, acho que a Nona sempre foi mais macho do que eu, né? Sempre foi ela que matava as baratas. Vocês foram maravilhosas quando me acolheram do jeito que sou. Obrigado por isso, acho que nunca tive a oportunidade de dizer. Lembram quando a Gigi, toda pequenininha, percebeu que eu gostava mais de Britney Spears do que as amiguinhas dela no colégio? Foi o dia que saí do armário para ela e nem sei se ela entendeu direito.
Por falar em entender as coisas, não entendo muito bem o que eles falam por aqui e me arrependo um pouco de não ter aprendido a língua quando tive a oportunidade. Me relacionei apenas com os brasileiros e exercitei muito o português durante este intercâmbio. Acho que vou voltar com o inglês pior do que quando vim para cá.
Sim! Espero tanto voltar logo para estar perto de vocês novamente. Não me arrependo de ter viajado. Era meu sonho. Mas ficar doente de repente, sozinho, me mostrou o quanto eu era rico só por ter vocês em minha vida. Quando eu sair desse hospital vou cancelar a matrícula do curso e voltar para o Brasil. Nem tive tempo de perder meu sotaque mineiro – AINDA BEM!
Parei um tempo de escrever porque os médicos vieram aqui tirar novas amostras de sangue, me fizeram algumas perguntas e tive que deixar o celular de lado. É meio chato escrever textos longos usando o celular. Fui reler o que eu tinha escrito e achei engraçado como funciona o fluxo doido do meu pensamento. Vou aproveitar para retomar o que eu queria falar desde o início.
Paula, querida irmã, é difícil encontrar palavras para falar do seu sacrifício para nos mantermos bem, apesar de tudo o que aconteceu. Não queria ter viajado depois de uma briga daquelas. Eu sei que eu fui o babaca da história e não tive coragem de assumir. Mas tive tempo para digerir tudo e agora tenho tempo para colocar a verdade no papel.
Os médicos voltaram. Me fizeram novas perguntas e uma palavra que entendi bem foi “family”. Parecem preocupados. Agora também fiquei. Mas vou tentar continuar e estou me segurando para não abrir o Whatsapp. Vou terminar esse e-mail!
Affff! Na hora que eu consegui retomar o pensamento, mais uma vez os médicos voltaram. Pediram para eu deixar o celular um pouco de lado e falaram que precisarei fazer um Raio-X. Ainda tenho tanta coisa para falar pra você, Paulinha. Tanto conselho para dar pra Gigi e tanto segredo para contar pra Nona. Vou ali e volto já.
Texto produzido para o Mundial de Escrita em 31 de maio de 2021.
Tem um livro infantil sobre isso?
Quando abri as primeiras páginas de O Passeio, já sabia que o final daquela história seria impactante. Tenho preferências pelas narrativas que falam da relação entre pais e filhos, e, como sou de chorar, já preparei o pacote de lenços de papel.
O livro, escrito por Pablo Lugones, ilustrado por Alexandre Rampazo e publicado pela Gato Leitor, é uma delícia de ler e mostra a relação de um pai com sua filha ao longo do tempo, um passeio por várias fases da vida. Algumas vezes um toma a dianteira, noutras, estão lado a lado, a avassaladora e inexorável passagem do tempo vai nos dando algumas lições.
Sou suspeito para falar das ilustrações de Rampazo, a quem admiro bastante, e aqui ele explora bem os cenários muito simples, e o foco nos personagens é total. Algumas sutilezas marcam as páginas e ajudam na condução da história.
Certo dia, numa conversa na família, começamos um debate sobre como este livro tinha sido feito. O texto e a imagem são muito complementares e é difícil imaginar que tenham sido feitos de maneira independente. A nossa aposta era que escritor e ilustrador tivessem criado tudo juntos.
Essa questão revela também uma das grandes qualidades da obra. É um conjunto muito harmônico de texto, imagens e projeto gráfico. Tudo funciona muito bem e nos transporta para uma viagem cheia de entusiasmo e nostalgia.
O Passeio é um livro para falar sobre relacionamento, sobre crescimento e perda. Mas, sobretudo, é para falar de jornada.
Garanta o seu pedindo pelo Whatsapp da Livroteca Story Time. Entrega em todo o Brasil =D
Curtiu? Acha que algum amigo pode curtir? Compartilhe este post ;)
Chegou aqui agora? Inscreva-se para receber novidades toda semana =D