Já falei aqui no Nenhuma Pista sobre a minha breve carreira como fotógrafo. E, embra meu futuro tenha sido diferente do desejado, carrego comigo alguns hábitos e técnicas que aprendi naquela vida pregressa, e muitas dessas ferramentas são uteis até hoje. É sobre um desses hábitos que quero falar =D
Enquadrar como exercício
Numa das muitas aulas da pós-graduação em fotografia, falávamos sobre flanar pela cidade: assumir uma postura descompromissada diante do caminhar no espaço urbano a ponto de perambular a esmo. O resultado disso seria descobrirmos uma nova cidade e descobrirmos a nós mesmos, eventualmente. Não tenho tempo para isso, era o que eu pensava.
Ao contrário de flanar, meu caminhar pela cidade era ativo e com propósito. Eu vivia equadrando tudo o que olhava. Depois de um tempo eu já não precisava usar as mãos como gabarito e, já íntimo do poder de cada lente que carregava comigo, nem precisava sacar a câmera para compor a fotografia em minha memória - celulares com câmera eram uma piada ainda. Como eu usava óculos de aros grossos na época, inclusive, me beneficiava do fato de ter um “quadro natural” diante dos olhos.
E foi esta atitude que me levou talvez a uma das mais marcantes descobertas da minha trajetória como sujeito criativo.
Eu caminhava de casa para o trabalho quando me deparei com uma carta de baralho no chão. Era um 7 de espadas. Ele estava enolvido por folhas secas e meu olhar o enquadrou naturalmente. Peguei o celular e registrei - nessa época já não andava com câmera por todo lado por já havia descoberto que meu futuro não estava na fotografia e tinha um iPhone no bolso.
O efeito contagioso do olhar
A descoberta, no entanto, não foi exatamente o 7 de espadas. E ele só ganhou importância mesmo algumas semanas depois, quando, por acaso, no mesmo caminho de casa para o trabalho, fui encontrando outras cartas para enquadrar. Passei também a recolher estas cartas que achava, criando uma coleção peculiar que chamei de “baralho urbano”.
Quase um ano depois de achar a primeira carta, tendo uma considerável coleção secreta de quase 15 exemplares, encontrei mais uma na sarjeta, toda suja. Estava com meus colegas do trabalho e eles me acharam louco, não só por estar pegando uma carta suja de barro no chão, mas pelo fato de eu encontrar cartas de baralho com alguma frequência. E eles não perdiam por esperar.
Enqanto eu fotografava e limpava a carta que acabara de achar, eles seguiram andando, provavelmente comentando sobre minha falta de sanidade mental.
Quando eu os alcancei, no entanto, estavam todos de pé, em volta de um 2 de ouros encravado nos paralelepípedos do centro de Salvador. Entusiasmado com o seu primeiro achado, Renato, o mais velho da turma, comentou: “Bicho, eu tenho 60 anos e nunca tinha encontrado uma carta de baralho na vida. Bastou o Bito dizer que encontrava que, 5 minutos depois, achei a primeira”.
Minha resposta imediata foi: “Renatão, as cartas sempre estiveram por aí, bastou você tomar consciencia delas para passar a enxergar”.
Desde este dia minha coleção deixou de ser secreta. O Baralho Urbano tem colaboradores no mundo inteiro e muita gente antes de mim já encontrava cartas de baralho na rua. Muita gente segue encontrando, enquadrando e registrando, inclusive.
Mas o mais interessante é como o olhar tem efeito contagioso e se espalha facilmente. Toda vez que conto para alguém esta história e toda vez que mostro minha coleção de mais de 100 cartas de baralho encontradas na rua, mais gente passa a enxergar coisas que jamais tinham enxergado antes.
PS - Hoje mesmo encontrei com minha filha essa cartinha de um jogo, quando estávamos saindo do parque.
Livro infantil sobre isso
No meu primeiro livro infantil, O Menino que Aprendeu (e ensinou) a Olhar, escrito por mim, ilustrado pela talentosíssima Carol Ito, com a segunda edição publicada pela Story Time, conto a história de Frank, um menino criativo e curioso que encontra uma carta de baralho na rua e lembra da sua avó, a caminho da escola. Quando ele volta, tenta pegar a carta, mas ela já não está mais lá. Como olhar focado e atenção redobrada, Frank passa a ver coisas na rua que jamais tinha visto antes, além de encontrar outras cartas de baralho.
Com esse superpoder em mãos, Frank descobre também que isso é contagioso quando seu pai, depois de conhecer sua história curiosa, também encontra sua primeira carta. E assim por diante, sua mãe, seus amigos e gente no mundo inteiro passa a ver o que jamais havia visto.
As ilustrações em lápis de cor e cores bem vivas atraem o olhar das crianças menores, mas a trama incomum é um prato cheio para os maiores, que se divertem ao exercitar o seu próprio superpoder de olhar. Incluímos um desafio legal no livro, que são corações escondidos desenhados em todas as páginas… alguns bem na cara e outros escondidos muitas vezes passam despercebidos na primeira leitura e depois todo mundo volta correndo para contar quantos são!
E tem o desafio pra fora do livro também: quando você encontrar uma carta de baralho na rua - e você vai encontrar! - tira uma foto e me marca lá no Instagram (@bitoteles e @baralhourbano) =D
Dia das Crianças
Já que você chegou até aqui e está se perguntando se é verdade mesmo essa história das cartas de baralho, saiba que o poder que uma boa história tem é justamente esse: te despertar para algo novo, te levar para lugares desconhecidos, muitas vezes debaixo do seu nariz.
No dia das crianças, que está chegando, que tal presentar os pequenos com livros instigantes, diferentes e cheios de surpresas?
A Livroteca Story Time tem uma porção de opções para todas as idades, gostos e bolsos também =D
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Realmente, cartas nunca apareceram no meu radar. Assim como diversas outras coisas. Mas basta um despertar para nunca mais deixar passar em branco essas "coisinhas" da vida.