26 letrinhas, palavras novas e uma lenda urbana
Ano novo e chegou à sua caixa de e-mail mais uma newsletter bissexta. Estou pensando até em mudar o nome real-oficial. Mas eu gosto do Nenhuma Pista, então seguiremos assim por enquanto! Mas bem… a ideia hoje é falar sobre como a aquisição e domínio de vocabulário têm um poder transformador e, ao fim, compartilho uma história autobiográfica que escrevi há alguns anos, apresentando o tipo de lenda urbana que me tornei. Sigamos =D
Tudo o que você precisa são 26 letrinhas
Eu tenho uma filha de 4 anos. A Lia. Uma criança que vale por umas 4 ou 5, tanto na fofura e lindeza, como na energia que emana. “Vento nos pés, fogo no rabo, olho maior do que a barriga”, sacam? A versão feminina do menino maliquinho. Pois bem. Apesar de ainda não estar na idade, Lia já começou um processo de alfabetização. Reconhece as letras, já escreve seu nome e soletra os nomes de amiguinhos e pessoas próximas.
Quando me vi admirado pela capacidade de uma criança de 4 anos produzir uma palavra escrita no papel, lembrei de uma reflexão que faço há tempos sobre a relação das ferramentas e artesãos.
O nosso alfabeto tem 26 letras. Essas 26 letras com um bocadinho de sinais gráficos são as mesmas para o mundo ocidental. As mesmas 26 letras que eu uso para escrever essa news, são as mesmíssimas letras utilizadas pelo oficial de justiça para entregar uma intimação na minha casa. As 26 letras utilizadas por Martin Luter King no seu discurso I Have a Dream são as memas 26 utilizadas pelo sistema do Imposto de Renda para me informar que caí na malha fina. Deu pra entender, né? As mesmas 26 letras que a Lia está aprendendo a usar agora são as que Machado de Assis usou para escrever Memórias Póstumas de Brás Cubas.
É óbvio que existe diferença de propósito e função, mas se a gente for afunilando, a gente vai começar a pensar que as 26 letras utilizadas num livro que considero ruim são as mesmas utilizadas num livro que leio repetidas vezes e jamais me canso.
Há no processo de amadurecimento da escrita um momento de domínio estilístico, onde o escritor sabe criar ritmo, sabe conduzir o leitor para descobertas ou desconfortos. Isso é fruto da forma, utilização de pontuação, quantidade de palavras por período, tamanho das palavras nesses períodos e assim vai. Mas o que acredito que faz a maior diferença, talvez a cereja do bolo da escrita (e do discurso de modo geral), é a habiliade de escolher a palavra certa.
Uma combinação específia, dentre as infinitas combinações possíveis das 26 letrinhas do nosso alfabeto, é capaz de elevar ou rebaixar um texto na régua do meu gosto pessoal. Mas nem é disso que quero falar agora.
Quando Lia está jogando um jogo no celular e não consegue avançar, grita chorosa: “Papaaaaaai, me ajuda. Eu tô estagnada!”. Como é possível que não tenha minha atenção uma criança de 4 anos estagnada? Com as palavras certas, ela consegue tudo o que quer.
O fato é que fazemos esse tipo de escolha o tempo todo também, não só no processo de escrita, quando queremos enfatizar ou impressionar, despistar ou demonstrar poder. Deixar escapulir pensamentos sobre aos problemas de transposição intersemiótica da proposta de um concorrente, assim, como quem pergunta as horas, pode te colocar numa posição muito boa numa reunião onde todo mundo finge que sabe do que está falando. Use uma combinação mágica e estará fingindo melhor do que todos os outros.
Palavras certas também servem para atrair a atenção, para começar uma conversa. Para contar uma história. No meu caso, é anosmia. Muitas das minhas aulas começam quando eu apresento à turma esta palavra. Já tinha ouvido falar? Pensou em procurar no dicionário?
Anosmia é a condição daquela pessoa que não tem olfato. “Não sente cheiro de nada?”. Não. Nadinha. Nunca senti. “Jura? Não sente cheiro de terra molhada? Não sente cheiro de brigadeiro? Não sente o perfume da sua filha ao sair do banho?”. Não. Esta é a condição da anosmia.
Travo este diálogo há muitos, muitos anos, anósmico que sou desde que me entendo por gente. Mas palavra certa é que me dá a oportunidade de sempre contar duas histórias, quebrar gelo e garantir atenção da audiência por alguns minutos. A primeira história é de quando eu descobri que algumas pessoas à minha volta tinham um poder que eu não tinha e que isso se chamava olfato. A segunda é de quando eu fui potencialmente reconhecido como um tipo de X-Men. Compartilho esta segunda com você. Espero que goste e que me entenda =D
O dia em que me tornei uma lenda urbana.
Quando eu tinha 6 anos, descobri que eu era diferente. Faltava algo em mim que todas as pessoas à minha volta tinham, e eu me sentia muito mal por isso. Era uma coisa tão trivial, tão ordinária, mas que parecia ser muito importante, porque não havia um dia sequer que eu não percebesse que era incompleto. Eu não sentia cheiro. E nunca senti.
Quando o bolo ficava pronto, quando o bebê saia do banho, quando a chuva tocava a grama ou quando uma bela menina passava, ou a primavera chegava, havia sempre alguém celebrando o cheiro de todas essas coisas. Eu, alheio a tanta alegria, fingia compartilhar, mas morria um pouco, a cada dia, sentindo falta de algo que nem conhecia.
Foram anos escondendo para o mundo minha verdade. Quando perguntavam, “estás sentindo cheiro de gás?”, ou “parece que há algo queimando no forno, não?”, minha resposta era sempre um eficiente e verdadeiro “não”. A pessoa então se sentia até bem, por ter um faro tão aguçado, já que eu, ali do lado, não percebia tal fragrância no ar. Descobri logo que ninguém se importava muito com quem não sentia cheiro, porque a conversa sempre terminava ali. Mas quando outra pessoa respondia positivamente sobre estar sentindo cheiro de qualquer coisa, as conversas duravam séculos. E eu lá, além de não sentir cheiro, além de anósmico, ficava mudo.
Tudo mudou numa semana chuvosa de dezembro. Raios e trovões balançavam a cidade toda e faltou luz em todos os prédios da região por dias seguidos. Algum tempo depois, vejo uma aglomeração estranha no meu andar. Estavam lá o síndico, o zelador e meia dúzia de vizinhos que falavam ao mesmo tempo no hall estreito, em frente à porta do apartamento que fica ao lado do meu. Estavam decidindo se arrombariam a porta ou não. Não havia ninguém em casa e os moradores só voltariam dali a alguns meses. “Não aguento mais”, falou a vizinha do andar de cima. “É porque não é você que tem que limpar esse hall todos os dias”, replicou o zelador. “E você, como pode morar aqui do lado?”, perguntou o síndico para mim.
Ué, aquela gente nunca tinha me feito mal algum. Qual o problema de morar ali? O prédio era uma espelunca, mas o preço era honesto. Apenas dei ombros, sem saber o que dizer.
Foi então que o filho da vizinha resolveu falar as palavras mágicas: “parece que tem um rato morto, dentro de uma fralda com cocô de bebê, misturado com peixe e camarão apodrecidos lá dentro. Pelo menos é esse o cheiro que sinto”. Entendi tudo naquele momento.
Curioso. Estavam todos se desfazendo. Quando o zelador abriu a porta com a chave-mestra, todos fizeram a mesma cara azeda. Três daquele grupo não aguentaram e passaram mal. Uma senhora mais velha bateu em retirada e ninguém teve coragem de dar um passo em direção à soleira.
Eu? Eu estava impávido. Tive vontade de rir, mas compadeci daqueles pobres mortais. Entrei pela casa do meu vizinho como um gigante. Impávido colosso, vasculhei por todos os cantos até encontrar a geladeira fechada, mas desligada. Dalí escorria um líquido estranho, escuro e viscoso. A trupe toda via, da porta, incrédula, minha passagem para dentro daquele mundo podre. Quando eu abri a porta da geladeira, mais dois daqueles curiosos caíram de joelhos, enjoados. Os mais fortes fecharam os narizes e evitavam respirar pela boca, tentando ver onde aquilo ia dar.
Encontrei sacos de lixo pretos no armário da cozinha e, calmamente, retirei todos os restos de alimentos que estavam descongelados na geladeira. Havia postas de peixe, sacos de camarão, lagosta e uma quantidade razoável de peitos de frango. Foram 4 sacos grandes de lixo. Eu não tinha ideia, até então, do meu feito. Descobri que eu tinha poderes mágicos naquele dia e meu nome passou a ser falado por todo o bairro, como uma lenda urbana. Passei a ser o homem que era capaz de suportar os cheiros mais horrendos do universo. E que morava ali, num prédio marrom de uma rua pacata do Plano Piloto de Brasília.
Outro dia, na padaria, saia uma nova fornada de pães quentinhos e uma vizinha comentou. “Nossa, que cheiro maravilhoso, não acha?”. Apenas acenei com a cabeça, sem falar nenhuma palavra, como de costume. Já ia entristecendo quando um dos faxineiros passou com um balde e uma vassoura na mão, resmungando: “queria ser aquele homem que suporta qualquer odor. Ninguém merece limpar esse banheiro”. Respirei fundo. Enchi o peito de orgulho e saí da fila para ajudar o homem. O pão cheiroso poderia ficar para depois. Eu tinha uma missão a cumprir.
Para quem ainda não conhece, juntei uma porção de combinações de 26 letrinhas e tentei usar as palavras certas em um e-book de contos publicado na Amazon, de graça para quem tem KU.
São histórias de terror leve que se passam na Ilha de Itaparica, aqui do ladinho de Salvador, onde passei parte da minha infância. Pedro Borralheiro e Outros Contos da Ilha do Medo conta a história de cinco amigos resolvem conhecer a Ilha, lugar onde seus pais passavam as férias antigamente. Em volta de uma fogueira, ouvem histórias macabras contadas por Milan, ou Zero, como os amigos o chamam, e uma figura sinistra parece estar à espreita.
Conheça as quatro histórias enquanto tenta descobrir o que vai acontecer com o grupo na praia. Quando você menos espera, a história chega até você.
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